O besouro apressou-se para debaixo da pedra listrada e ela levou os dedos à terra, como alguém levou os dedos ao piano. Tensa, densa, imensa, a terra despertou com a intrusão. Súbito: esquadrinhou-lhe os dedos farejando a pele, auscultou-lhe o sangue sulcar caminho pela carne, enfiou-se pelas unhas tentando alcançar o coração. A mão tremeu na terra e recuou com o abalo da inquisição. Muito mais tarde, apenas o tempo de uma respiração, aproximou-se transparente, quase com medo quase pedindo quase chorando. O piano reconheceu a melodia de quem o tocava e tomou-a para si, ecoando na pequena sala, escapando pela janela aberta na parede oposta. A terra soube que o toque dela não trazia um tirano. De trás da pedra listrada saíram todos os tons de verde. Ela leu na fragrância que subia do solo que fora acolhida e, tombando, esquecendo a certeza das direcções, norte sul este oeste transtornados, acordar lavar a cara vestir algo sair de casa a correr, bons dias boas noites boas tardes trocados num passado sonho esfumado, vida, que vida até agora, que sentido fizera a vida até agora, soltou o choro que guardava nos olhos. Um alvoroço de asas cobriu o céu por momentos, azul negro azul estilhaçado, flocos de cinzento que desciam com a cadência das folhas de outono. Invocada pelas penas que caíam, por todos os tons de verde, por um piano qualquer ou pelo choro dela, uma multidão de chilreios encheu o ar. As lágrimas atravessaram a terra ao longo de toda a tarde que o sol demorou a descer. A noite: lentamente, fez-se noite. Uma a uma, as aves recolhiam às ramas e cessavam o canto, confundindo-se de novo com as folhagens. Os soluços dela cederam ao anoitecer. Alguém tocava uma sonata ao luar. Uma promessa de luar sobre este bosque também.
Abriu os olhos para o alto. Não há céu que cubra a nossa dor. Não há céu que cubra… Um uivo ao longe. Os últimos acordes da sonata. A lua estaria lá, estaria entre os astros impossíveis. Pousou os dedos nas pálpebras, calando as lágrimas que restavam escorrer.
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E agora, merece-o. Agora os passos. Agora o chão, agora o frio. Agora ir fazendo o caminho. Serrat! Agora as sandálias pela poeira, os restos de outros presentes sob os pés, os sons dos passos. A lua algures. A pele a arder, a sussurrar memórias de calda morna, memórias de quietude, todas as memórias de segurança e certeza, de uma saudade pequenina que te envenena o sangue. A pele a segredar: deixa-me envolver-te, voltemos juntas para casa. Mas tu sabes que casa ficou para trás, que a escolha é consumada. Agora, os passos.
Os céus continuam reféns da noite, pode nunca mais ser dia. Os lobos sibilam, satisfeitos, que o destino do mundo é escurecer. Tudo acordado, tudo alerta. Dormem talvez aqueles que te querem bem. Dorme o piano. Não tomes como ameaça a vigília, não vejas intenção no agreste. O cosmos não é hostil, é vertigem.
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As cigarras cantam na vertigem, lá fora. Se pudesses pensar o canto da cigarra como um sentimento, terias paz. Mas tu nem sabes da distância entre a respiração e a palavra. Tu cismas se a atmosfera é uma armadilha. Por isso dormes, e quando acordas levas as mãos ao piano.
Mas ainda é cedo, e enquanto a noite guardar os céus, sonharás com um bosque de sombras onde caminha sozinha a tua filha. Tremerás, e tremerão contigo as penas de ganso e as molas do colchão, ao sonhá-la pisar, quase, uma serpente, uma pedra aguçada, um buraco camuflado. Verás como olha em redor, perscrutando o balanço dos troncos e o piar do mocho. Reconhecerás no seu olhar uma coragem que recusaste ter. Fita o seu olhar, fita a chama que nele nasce. Não pares de olhar! A chama cresce para ti: fixa-a enquanto ela se incendeia nos teus tremores, nos teus suores. Encandeia-te na chama enquanto ela te consome, cega-te no laranja da chama, no negrume de ti. Acorda! E geme, geme para as penas de ganso, para as molas do colchão, para a luz do candeeiro que acendes (ainda não é seguro deixar entrar os raios do sol nascente), para o piano fechado que espera:
“A indizível, indelével, subterrânea dor de todas as coisas. O peso de existir, o peso de existir… O horror de todo o caos, o horror de tanto cosmos, o terror de cada visão. E termos que ver, termos que assistir, agrilhoados, à condenação. Sabermos as cinzas que seremos, as cinzas que somos. E, pior que tudo o mais, não haver porquê! Não há destino, ou motivo, ou sentido, no que há. Não há Deus para nos embalar. Não há céu que cubra a nossa dor.”
E leva as mãos ao piano.
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“Será a luz uma partida das sombras?”, perguntas aos raios do sol nascente (ou terão perguntado por ti as pestanas?). Esfregas os olhos e ris-te da pergunta: “É decerto uma partida das sombras! A questão é: quem faz a partida, e quem parte, e o que parte?”, pensas, enquanto a luz vem chegando rindo de alguma partida, vem rindo e partindo as sombras com pequeninos cristais que caem debaixo das copas das árvores, estilhaçando a manta escura que cobria a vigília em reflexos de verde, reflexos de rosa, reflexos de céu, reflexos da estrela que sobe sobre as copas. E paras para assistir à partida da noite, sem dúvida uma partida da manhã, como confirmam cúmplices os risos das primeiras aves.
“Como é possível não existir uma casinha de chocolate neste sítio?”, espantas-
-te, ao olhar em redor. “Onde terá ficado, no seu caminho para este lugar? Ter-se-á porventura distraído nalgum vale secreto, ignorando durante séculos o apelo desta clareira? Chegará algum dia? Ter-se-á esquecido de que há um único lugar na Terra onde pertence?”, lanças consternada, e nada te responde. Começas a duvidar do destino, enquanto decides, resoluta, que não serás uma casinha de chocolate. Não te perderás pelo caminho, não faltarás ao sítio onde pertences. E partes de novo, ninguém sabe rumo ao quê, seguindo o sol, para já.
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Há quanto tempo não partes? Há quanto tempo pisas os mesmos passos, encontras as mesmas paredes, os mesmos fantasmas? E no entanto, vives. Levas as mãos ao piano quando acordas. Levas os olhos à pequena janela que se abre para a vertigem, lá fora. E levaste a pena ao papel. Endereçaste a carta. E aquele pedaço de papel esborratado percorreu todos os caminhos que te esperavam, deu todos os passos que te faltavam, chegou onde tu deverias ter chegado. E agora, embora ainda não o pressintas, alguém percorre o caminho de volta. Alguém está para chegar.
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Deverias ter chegado surpreendendo, e chegaste surpresa por não haver ninguém para surpreender mais. A mãe suspirou, “Helena”, suspirou. O pai soube muito depois, muito longe dali. E tu cresceste a imaginar como seria nascer para alguém. E então chegou aquele pedaço de papel amarrotado, chamando “Helena”, chorando “Helena”. E tu partiste.
Agora que deixas o bosque e tomas a estrada, não te consegues lembrar de uma tarde com tanta luz como esta. A luz vem de um céu quase branco, do pavimento da estrada, das últimas árvores, dos seixos ao longo do caminho, do vento nos teus cabelos, da própria terra, do teu nome, “Helena”, do teu nome. E segues, os passos pela estrada, por toda essa luz.
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“Helena”, repetes, “Helena”. Mil vezes a culpa, “Helena”, mil vezes o pesar, “Helena”, mil vezes o nunca, “Helena”. Mil vezes a memória de quando soubeste que nascera, pelo sangue da mãe nascera. “Helena”, que abandonaste antes de saberes que estava para chegar. “Helena”, contra quem pecaste. “Helena”, que não saberá como é ser querida. “Helena”, razão por que te fechaste nesse sótão. “Helena”, que te privou para sempre da felicidade.
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“Felicidade?”, perguntas-te, não percebes bem porquê, “Felicidade? Palavra tão frívola, felicidade, quase a casca de uma palavra. Felicidade, palavra sem sumo, palavra maquilhada, maquinada! Não tem nada a ver com a vertigem, nada a ver com o mistério, com os passos, com o sagrado. Como poderia amar uma palavra que não tem nada a ver com o olhar?”
E enquanto pensas o dia branco refugia-se em lua sobre a estrada, e tu chegas à cidade.
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“Será que a cidade pertence à vertigem?”, pensas, olhando pela janela enquanto a lua cresce sobre a noite, estranhando pensares assim. E então, que estranho, escutas a chuva derramar-se de repente sobre a cidade, vês a água a escorrer pelos telhados, e já não vês ou escutas mais nada. E só há as águas.
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As pessoas fogem para suas casas e ela corre pelas ruas, ele corre para as teclas. Toda a cidade é chuva, a cidade já nem sabe se há de ser noite. E só há as águas. Ela corre, corre, tropeça, corre, corre para a promessa de brilho branco que tem de estar algures. O piano chora, chora toda a chuva, toda a mágoa, todo o pesar de uma perda. Chora pela janela aberta para as águas. Chora entre as lágrimas dos céus. Chora sobre os passos dela. E, que estranho, ela deve ter ouvido o eco desse choro. Porque corre, corre mais que nunca, corre seguindo o rasto que o choro deixa na chuva. E na cidade só há as águas, os passos e o piano. Mas, que estranho, o piano deve ter ouvido os passos dela a chegar, porque de repente se cala. E calam-se os passos. E só há as águas.
O piano calou-se, estranha ele, não consegue mais chorar. Corre para a janela e descobre, sobre os telhados, o luar que lhe prometera num pedaço de papel esborratado. E Helena, as últimas lágrimas escorrendo em silêncio na luz branca que vem do luar ou do seu nome.